Ontem,
esqueci-me de picar o cartão de ponto depois de almoçar;
lembrei-me – vá lá, lembrei-me – de ir comprar papel higiénico, algo de que me
tinha esquecido anteontem;
esqueci-me, há uns dias atrás, da porra do relógio, mas
lembrei-me de pôr gasolina, e ainda bem, porque o bólide já andava a vapores;
lembrei-me de comer meia sandes, a meio da manhã, porque, no meio da correria dos faxes e dos telefonemas, a barriga começou a fazer uns ruídos maliciosos;
esqueci-me do euro milhões; ao abrir a porta de casa, para sair para mais um dia de trabalho, olhei para os pés da minha mulher e, com um sorriso gozão,
lembrei-a de que ainda estava de pantufas;
esqueci-me de dar comida aos peixes mas, ao passar ao lado do aquário, houve um estímulo cerebral que
me lembrou desta tarefa caseira; tranquei a viatura à porta de casa, sim, tranquei, mas voltei atrás para
confirmar porque, ao chegar a casa, estava com a
impressão de que não o tinha feito;
lembrei-me de mudar a fralda à pequena criatura e de lhe atirar com um bocado de pó de talco para cima das partes mais íntimas, porque
reparei que estava um bocado assada;
esqueci-me de pagar a conta do telemóvel, mas o operador mandou-me uma mensagem escrita para me
relembrar.
Lembrei-me de sentar a pequena criatura na cadeirinha e de lhe apertar o cinto, antes de arrancar com o bólide rumo ao infantário.
Não me esqueci de a tirar da cadeirinha e de a levar, juntamente com a mochila, provida de fraldas, lanche e outros artefactos que fazem falta a uma bebé, para dentro da escola.
Não me esqueci de me baixar para lhe dar um beijo, desejar-lhe um bom dia e recomendar-lhe que se portasse bem.
Talvez não tenha o direito – e acredito, até, que não tenha – de julgar o “pai” que se esqueceu da pequena cria dentro do carro, durante três horas e debaixo da torreira do sol, provocando-lhe a morte, mas é daquelas coisas que não me cabem na carola e que acho totalmente inconcebíveis, apresentem as desculpas que apresentem, como cansaço, stress, excesso de trabalho e afins.
Não consigo, nem quero, imaginar a angústia por que este homem está a passar e que o vai atormentar para o resto da sua vida, a não ser que enfie um balázio pelos cornos dentro, e que é, sem dúvida, o maior castigo que se lhe pode aplicar, mas daí a manifestar o meu apoio e solidariedade…
Ter pena dum “pai” que esquece um filho dentro dum carro?
Não contem comigo!
O PapáNOTA – Também publicado no Sempre-a-Produzir